segunda-feira, 26 de março de 2012

Sorriso de criança

Aquele menino frágil, sentadinho no colo da possível mãe, chamou-me atenção. Tinha os olhos brilhantes, cílios compridos como duas cortininhas fechando e abrindo. Olhinhos cativantes implorando por atenção, castanho escuro, daquele castanho mais que castanho algo se assemelhando ao preto.

Abaixo do nariz via-se uma gosma verde endurecida, a mãe repara na pequena sujeira, e limpa seu pequenino nariz. Agora sim, bem melhor está meu garoto, limpinho. Ele observa-me, ora olha diretamente para mim, ora desvia, por pura curiosidade de criança atrevida. Bem que sou uma figura um tanto intrigante, devo possuir pisca-piscas por todo o corpo, ou é apenas a “loirísse” crônica. Realmente deve de ser bem impactante para um ser tão pequenino.

Criança peculiar, chinelos do tamanho das minhas mãos, todo colorido. Cabelinho liso e castanho, chegando a cor da madeira mais nobre, figura exótica, mas ao mesmo tempo comum. Enfim convenço-o a fixar suas pupilas em minha figura chamativa, digamos que uma conversa por troca de olhares.

Todos sabemos quão difícil é conquistar uma criança, ainda mais sem palavras. Ele faz careta, eu o acompanho, ficamos assim por minutos a fio. Levanto as sobrancelhas, pisco os olhos, mostro a língua, franzo a testa, delicio-me, ele ri. 

O serzinho faz tantas caretas quanto eu, caio na gargalhada, ele sorri deliciosamente. Como me deixa extasiada esse sorrisinho, sinto-me em casa, quase feliz. Lá fora confusão e falatório, mas eu não ligo à mínima, a pessoinha envolveu-me de tal maneira que nada me tira a atenção daquele corpinho.

O ônibus para, a mãe se levanta, segura meu garoto no colo. Ele grita, seu chinelinho caiu, a mãe recolhe a coisa pequenina do chão, ele se acalma. Os dois vão saindo, continuo observando fixamente o menino, nossos olhares se cruzam, presenteia-me com um belo sorriso, respondo com outro ainda mais largo, perco-o de vista. Viro-me desesperadamente para a janela, apenas vejo aqueles olhos intrigantes ao longe, sinto uma angústia, um choro inesperado me domina, lagrimas caem vagarosamente, um choro agradável.

Tudo que ficou na minha mente foi seu sorriso, tão ingênuo, tão contente, sorriso de criança.

segunda-feira, 12 de março de 2012

A dádiva da imaginação


Dentro da minha cabeça, perdida entre pensamentos, já fui a dezenas de lugares, beijei bocas desconhecidas, casei, tive filhos, briguei, apaziguei. Conquistei homens importantes, desfrutei da vida em lugares paradisíacos, fiz tudo que sempre desejei fazer. Já morri inúmeras vezes, discuti por terceiros, embriaguei -me, falhei. Lancei-me em grandes viagens, muitas foram, tantas que se levaria uma eternidade para contá-las. Conheci povos antigos, fui imperatriz, escutei a doce melodia de Beethoven, bebi com Modigliani. Falei línguas, do russo ao finlandês, tive amores incontáveis, avassaladores, como nos romances, conheci Drummond. Envelheci, e vi que a vida é realmente surpreendente. Estudei filosofia, fui historiadora, até teóloga , a Grécia foi meu segundo lar. Perguntei a Platão pra que tanta confusão? Apaixonei -me pela França, morri de amores pela Itália, fui feliz. Como chorei , como amei, como... Emocione -me, desfrutei da riqueza, senti a pobreza por todo o meu corpo, gritei. Fui baronesa, uma princesinha, até magnata, enlouqueci. Vivenciei tantas coisas dentro de mim, pareceu ser tudo suficientemente gostoso, mesmo sem sentir o gosto. Gostei de ser o que não pude ser. Num estalo desperto, "é aqui que eu desço moço, obrigada".